Descobrindo entre os marginalizados e miseráveis o que realmente significa seguir a Cristo
Nota da Redação: O artigo a seguir descreve um trabalho singular desenvolvido numa região decadente do centro de São Paulo. Há extensas citações do Pr. Paulo Cappelletti, presidente da missão. Suas afirmações não representam necessariamente a opinião do Conselho Editorial da revista Impacto e podem até chocar o leitor. Entretanto, consideramos que o trabalho que faz e o preço que paga lhe dão pleno direito de ser ouvido, até nas suas críticas à igreja como está hoje. Pedimos, tão-somente, que o leitor pondere tudo com coração aberto e retenha o que o Espírito lhe vivificar. Seja impactado!
Cruzando ruas famosas pelo comércio especializado de produtos eletrônicos, nossa atenção era disputada por lojas com CPU’s, cd-rom’s, instrumentos de som e garotos deitados na calçada fumando cachimbos de crack. Prostitutas de várias idades faziam “ponto” em estreitas portas de hotéis imundos, ladeados por lojas com cartazes de “impressoras laser usadas em 3 vezes sem juros”.
Percorríamos o centro velho de São Paulo, região conhecida como Crackolândia, dada a facilidade de se verificar o uso de drogas a céu aberto. A visão de crianças entorpecidas é revoltantemente comum. Tradicionalmente descrito como antro de vício, prostituição e crimes violentos, o centro velho não muda a despeito dos planos municipais de revitalização. E nos últimos anos, a decadência e ruína estão mais profundas.
A Missão CENA
Um grupo de jovens seminaristas me acompanhava em uma visita à missão CENA (Comunidade Evangélica Nova Aurora). Encontramo-la instalada em um prédio antigo que serviu a um histórico clube de São Paulo. Uma grande fila de moradores de rua aguardava o início da distribuição de refeições. Ao passar por eles, fomos envolvidos por uma atmosfera de odores, cuja emanação ia do cheiro fétido de corpos sem banho ao agradável aroma da comida. A equipe, formada por gente de todo lado (recuperados, missionários brasileiros, suecos, ingleses, americanos...), estava a todo vapor: panelas chiavam na cozinha, esfregões e rodos limpavam o chão, organizadores ordenavam a espera pela refeição e as filas de banho. Na hora das refeições, os moradores de rua passam primeiramente pelos banheiros, estrategicamente posicionados. Banho primeiro, refeição depois. Nem todos gostam.
Assim que chegamos, nos deram serviço. O pessoal foi se envolvendo em algum afazer. Podado de dons que parecessem úteis, como eu ajudaria? Ocasionalmente utilizava um rodo (o maior que já vi!) para puxar a água do chão. Então piorou: pediram que eu pregasse, uma mensagem rápida de uns 5 minutos. Não me lembro do que falei, mas sim do esforço em escolher palavras adequadas. Foi difícil! Sentados diante de mim, aguardando a refeição, dezenas de moradores de rua oscilavam entre impaciência, torpor alcoólico ou um inesperado interesse. Público heterogêneo: homens e mulheres com históricos diversos: trabalhadores braçais que perderam o teto, profissionais especializados que sofreram decepções amorosas, portadores de doenças mentais e gente que nem se lembra mais como foi parar na rua.
Quando terminei, alguém sugeriu que me sentasse com os mendigos e conversasse. Movi a cabeça procurando um interlocutor. Um homem de idade indecifrável, estimo que de 30 a 50 anos, chamou-me a atenção. Mesmo após o banho, sua pele estava encardida e manchada, e o rosto grande e anguloso, emoldurado pelo cabelo desgrenhado, compunha uma selvagem aparência; parecia uma espécie de viking moreno.
Não demorou e desenvolvemos uma animada conversa. Ele explicou detalhadamente como conseguia CPF’s frios e outros documentos, tarefa que fazia com regularidade, para si e para outros. Um dos jovens que me acompanhava sentou-se conosco. Animado com o aumento da platéia, o homem contou sua história mais impressionante: sofrera um atropelamento há quase dez anos. Seus intestinos ficaram expostos enquanto sangrava sob as rodas do carro. Socorrido, foi levado ao Hospital da Santa Casa, onde passou por uma operação paliativa. Avesso ao ambiente hospitalar, fugiu antes da cirurgia definitiva. Abriu então a camisa, soltou uma faixa que o envolvia na região do abdômen e mostrou, a mim e a um assustado seminarista, como seu ânus estava agora na barriga, ao lado do umbigo. Apesar desse susto, os sentidos de meu coração foram adaptando-se, e pude perceber além da aparência: vi uma pessoa singular, vivaz e inteligente, feita à imagem de Deus, ainda que coberta com a fuligem da rua e tornada invisível pela indiferença da grande cidade.
Com as portas do carro travadas, vidros fechados e ar-condicionado ligado, cruzamos com eles sem vê-los. Mas ali, criadas à imagem de Deus e por ele amadas com obsessão, no espaço entre a pista e a calçada, vivem, moram e morrem pessoas singulares. E a distância entre nós não é medida em metros, mas em compaixão. Nossa compaixão as alcançará?
O Que Fazer?
A missão CENA tenta cobrir essa distância. Seu presidente, Pr. Paulo Cappelletti, é avesso a qualquer culto de personalidade. “Aqui não homenageamos ninguém. Na CENA há muito trabalho, não personalidades em evidência”, diz. A seu pedido, devo chamá-lo como é conhecido nas ruas: Macarrão.
Foi uma das melhores conversas que tive: atendeu-me prontamente, embora tivesse um compromisso dali a pouco tempo. “Vamos levar uma maca ginecológica para um prostíbulo. A ginecologista atende aqui no clube. Mas é difícil as garotas virem, só aquelas com muito vínculo com as missionárias. Fomos ao prostíbulo, conversamos com as meninas e sugerimos levar a ginecologista com a maca para fazer um exame papanicolau. O mais difícil foi explicar que o exame exige 72 horas sem ‘trabalhar’.”
Alto e grisalho, com voz forte e fala jovial, Macarrão exprime-se com uma franqueza desconcertante. Quando discutimos sobre o tempo que leva a recuperação de dependentes, ele responde: “Quanto a converter, eu mesmo estou tentando... não podemos deixar de enfatizar o processo de crescer em Cristo”. Ele apresenta casos em que o trabalho de recuperação durou mais de 10 anos.
Macarrão mora com seus dois filhos e a esposa Sílvia, que é assistente social, em uma casa família com mais 20 pessoas, todas elas tiradas das ruas. Tomei um café da manhã com eles, certa vez, e os vi lidando com problemas bem familiares, como estímulo a leitura e preparo para procurar emprego.
Agora ele está vestido com uma bermuda, camiseta e havaianas, e parece-se muito com algum dos atendidos pela missão. Sueli pergunta se ele vai se arrumar. “Vou a um prostíbulo”, responde bem-humorado. “Quanto mais malvestido, melhor...”.
Macarrão é famoso por pregar uma vez nas igrejas e não ser convidado de novo.
Na inauguração de um templo novo e luxuoso, não resistiu e trombeteou lá do púlpito:
“Segundo a escatologia pré-tribulacionista, este templo vai ficar pro diabo. Aqui deveria funcionar um albergue ou uma creche. Já que fez, use! Em vez de templos de uso exclusivo de uma igreja, deveríamos levantar prédios para uso comum dos cristãos, da sociedade e comunidade adjacente. O templo é um instrumento, não deveria ser um monumento erigido a nada. O movimento evangélico de hoje não se assemelha de jeito nenhum ao movimento do século XVI. Além disso, historicamente a Reforma se adequou aos ricos”.
Sem Máscaras
“A igreja perdeu o rumo. Ernst Kasemann, o teólogo, dizia já em 1931 que não podemos comparar o cristianismo atual com o Cristo Senhor. O que o cristianismo tem a ver com Cristo hoje? Kierkegaard também disse que o mundo religioso cristão é parecido com uma festa de máscaras”.
Kasemann e Kierkegaard? Uma citação surpreendente feita por um pastor que empurra uma mesa ginecológica rua acima. Profundidade intelectual, espiritualidade prática e uma atitude questionadora são características de Macarrão.
O Movimento de Jesus: em direção aos pobres
“Parte da razão de as igrejas não se interessarem pelo pobre é facilmente respondida: como vou pedir dízimo de um sem-teto, que vive na rua? Nós é que temos que dar nosso dízimo pra ele! Madre Tereza teria dito o seguinte: ‘Se houver pobre na lua, iremos até lá’. O movimento de Jesus é um movimento em direção aos pobres. Que não são muito diferentes de Jesus: ele não tinha onde morar ou o que comer. Se ele não era pobre, o que era então? A frase em meu orkut e msn é ‘aquele que quer pregar o evangelho aos pobres, tem que se fazer pobre como eles para que o reino de Deus apareça’. Quem prega o evangelho tem que conferir ao pobre alguma dignidade, uma possibilidade de vida nesta Terra, tornar sua vida melhor. Jesus deixou a sua riqueza para que os pobres pudessem ser ricos. Ele perdeu sua vida para que os pobres que morrem possam ter vida. A intenção do evangelho é esta: dar vida. E essa vida acontece fora, no convívio e no caminhar. Ajudando alguém a conseguir emprego, ‘batendo na porta’ das empresas junto com ele e mobilizando pessoas a ajudar e repartir seu dinheiro com os pobres.
Há sentido em 2.500 pessoas estarem dentro de um templo e ao final alguém dizer: ‘o culto foi maravilhoso!’? Maravilhoso em quê? Onde Deus se manifestou? O rico ficou mais pobre? O pobre ficou mais rico? Algum dos pobres da igreja teve ajuda para construir sua casa? Levantar a mão, ir à igreja, sentar no banco e ouvir um sermão, cantar as mesmas músicas todo domingo... Será que a vida cristã se resume a isso, uma espécie de monastério dominical? Eu não consigo viver assim.”
A Conversão Deve Ser do Coração
“A maioria dos pastores não se importa com aspectos essenciais do cristianismo, como moral ou mesmo perdão. Jesus disse em Mateus que se você tem algum problema com alguém, primeiro pede perdão e depois oferta. Minhas ofertas devem condizer com minha vida com Deus. Finanças não deveriam falar tão alto. Mas ouvimos sermões em que gente berrando condena pessoas que não dão o dízimo. Mesmo com tantas necessidades que experimentamos na missão, ouso dizer que o problema da igreja não é dinheiro: é um problema moral e, por que não dizer, de conversão.
“Não há uma conversão do coração, e sim uma conversão psicológica. Só isso explica andar pelo centro velho de São Paulo e não ter compaixão pelas pessoas caídas. Não dá pra viver um ‘evangelho’ que não se compadece das pessoas. Como alguém convertido de verdade poderia ver alguém passando fome e dizer: ‘eu vou orar por você...’. A julgar pelo que diz o apóstolo João, o que devemos é agir!”
À nossa volta, o cenário é de decrepitude e abandono, mas Macarrão fala com fé e entusiasmo sobre os planos da missão: uma creche para filhos de prostitutas, um projeto filantrópico para construção de casas populares...
Eu e minha turma rumamos pra casa. Vejo toda aquela gente embarcando no metrô lotado, corpos coladinhos, cada um vivendo um mundo tão distante um do outro! Eu não consigo imaginar Jesus fazendo outra coisa que não fosse envolver-se com as pessoas, chorar por elas, buscar os marginalizados. Todos que desejam ver Jesus caminhando em nossas esquinas e cortiços, condomínios e avenidas, farão das palavras finais de Macarrão uma oração:
“Não quero ser chamado de reformado nem de evangélico. Eu quero ser conhecido como cristão, porque quero seguir a Cristo. Quero ter ações na Terra que promovam a pessoa de Jesus.”
Obs. O Pr. Paulo Cappelletti está atualmente abrindo um novo trabalho nos mesmos moldes em outro local da Grande São Paulo.
Para maiores informações:
http://www.missaocena.com.br
por Eliasaf de Assis